CRISTO NOSSA PÁSCOA (1 Cor 5,7)
Saímos, a pouco, das grandes celebrações da Páscoa. Pode
acontecer com a Páscoa aquilo que o papa João Paulo II alertava que pudesse
acontecer com o ano santo: as celebrações que acompanharam a solenidade da
Páscoa, tanto pelo número quanto pela riqueza dos ritos, podem nos dar uma “sensação de saciedade” que pode “nos induzir a uma atitude de relaxamento”
Pelo contrario, tudo isso deve “suscitar
em nós um dinamismo novo”, pois, como nos adverte Jesus: “Quem, depois
de pôr a mãos no arado, olha para trás, não é apto para o Reino de Deus”
(Lc 9,62). “Na causa do Reino”,
continua o beato João Paulo II, “não há
tempo para olhar para trás, menos ainda para dar-se à preguiça” (Novo
millennio ineunte,15).
As celebrações litúrgicas são o momento mais alto da
nossa vida de fé (SC 10),
porque atualizam em nossa vida o sentido dos fatos (mistérios) da vida de Jesus
que celebramos. É à força do memorial (re-cor-dar) que traz para o aqui e
agora o acontecimento celebrado. Sem isso nós não entraríamos no dinamismo da graça que
estes acontecimentos contêm.
Entre os acontecimentos (mistérios) da vida de Jesus, a
morte e ressurreição revestem um significado próprio devido à força sintética e
inclusiva que eles contêm no conjunto da vida terrena de Jesus. Morte e
ressurreição constituem o chamado mistério
pascal, consumação da vida de Jesus de Nazaré, e paradigma e síntese da fé
cristã.
Apreendemos que o mistério pascal é a síntese conclusiva
de uma longa história da ação salvífica de Deus que intervém na vida de um
povo, por Ele escolhido, para ser um sinal do seu designo de salvação
universal.
Vimos que a Páscoa, caminho deste designo de salvação
universal, teve vários momentos na história, revestindo a dimensão teológica ou
cristológica e antropológica, segundo o autor que se destaca. O “Que
significa este rito?” (Ex
12,26), repetido no início da ceia pascal hebraica, recebe diferentes respostas,
dependendo da situação história e do protagonista destacado na ação.
A explicação mais antiga recorda a passagem (paschein)
de Deus diante das casas dos hebreus marcadas pelo sangue do cordeiro. Diante
destas casas, Deus “passa adiante”, “passa sobre” como sinal de proteção,
enquanto as casas dos egípcios são golpeadas pela morte dos primogênitos (Ex
12, 26-27). É Páscoa porque é a passagem,
Deus que trouxe a salvação. É a dimensão
teocêntrica da Páscoa que
predominava em ambientes do judaísmo oficial da Palestina.
Num outro acontecimento inclusivo (é emblemático de
tantos outros que o preparam) que é o da passagem do Mar Vermelho, a Páscoa é a passagem do povo através do mar Vermelho (Ex 14, 29). É
a dimensão antropocêntrica da Páscoa que predominava em ambientes
do judaísmo da diáspora (fora da Palestina).
Estas interpretações, ligadas aos fatos históricos, acabam
cedendo lugar ao significado alegórico: passagem do homem da escravidão
à liberdade, dos vícios à virtude. Neste sentido, Fílon de Alexandria vai dizer
que “Páscoa significa a purificação da
alma... a passagem de toda paixão para o que é inteligível e divino”. Tanto
a passagem de Deus, quanto a passagem do povo através do Mar Vermelho têm uma
ressonância espiritual que, partindo da ação de Deus, leva ao esforço interior para o bem. Esta transposição de significado - do
plano histórico ao espiritual – merece nossa atenção, pois assume uma
particular importância também para o Novo Testamento.
Bem cedo os primeiros cristãos começaram a celebrar a
Páscoa com um significado próprio. Segundo o quarto evangelho, a Páscoa é a
passagem de Jesus para o Pai: “Jesus sabia que tinha chegado a sua hora. A
hora de passar deste mundo para o Pai” (Jo 13,1).
Esta transposição rápida e nítida se deu pelo fato de
Jesus ter morrido por ocasião de uma páscoa hebraica e, mais ainda, porque
segundo João, a morte de Jesus aconteceu na hora da imolação do cordeiro no
templo, daí a denominação de Cordeiro
de Deus.
Por isso mesmo, num primeiro momento, a Páscoa é a paixão
e a morte de Jesus. Mas não se trata da morte em si mesma, como fato dramático,
mas da morte como aniquilamento da morte na vitória da ressurreição: é a morte engolida pela vitória de 1Cor 15, 54. Isso fez com que no
tempo do martírio - basta dar uma olhada nas diversas Atas dos Mártires - a paixão era intimamente associada á
idéia de vitória e de glória, portanto de ressurreição: o mártir celebrava aqui
a sua sexta feira santa e o seu domingo de ressurreição no céu, como dizia
Dionísio de Alexandria. No comportamento dos mártires ecoava a expressão de
Inácio de Antioquia: “a sua paixão foi a nossa ressurreição” (Carta aos Esmirnenses, 5,3). Trata-se de uma Páscoa
cristológica e histórico-comemorativa.
Aqui, morte e ressurreição mantêm uma estreita unidade,
pois foi através da morte que Jesus passou para a vida-ressurreição, assim como
o próprio Jesus explica aos discípulos de Emáus (Lc 24, 26). Santo Agostinho,
na sua obra sobre a Catequese
dos iniciantes (23,41),
sintetiza assim: “Paixão e Ressurreição
do Senhor: eis a nossa Páscoa”.
Mas, como para a Páscoa do AT, também para na Páscoa do
NT acontece uma transposição de significado que constitui a síntese mais
importante e que permaneceu como significado último da páscoa: é a passagem da Páscoa de Jesus para a
Páscoa do batizado. À
pergunta do AT “Que significa este rito?” (Ex 12,26), corresponde à outra
parecida feita por Santo Agostinho: “Por que fazemos vigília esta noite?”, que teve, ela também respostas
diversas.
Várias passagens do NT permitem esta interpretação, basta
citar aqui Rm 6,3-4: “Ou vocês não sabem que todos nós, que fomos batizados
em Cristo fomos batizados na sua morte? Pelo batismo fomos sepultados com ele
na morte, assim para que como Cristo foi ressuscitado ... assim também nós
possamos caminhar numa vida nova” (cf. Também Col 2, 12). Vida nova: eis o ponto de
partida do batizado na morte e ressurreição de Jesus.
Esta associação da Páscoa com o Batismo é uma intuição
que encontrará adesão em toda a história da espiritualidade; foi consagrada
pela liturgia, basta pensar nas orações das missas do tempo pascal, e foi
retomada pelo Concílio Vaticano II na reforma litúrgica dos sacramentos da
Iniciação cristã.
Santo Agostinho se pergunta se é só Jesus que passa da
morte para a vida e, no Comentário sobre o evangelho de João (55,1) explica: “Na Cabeça uma esperança foi dada aos membros de seguir com certeza a
ele que passou”. Neste sentido, a passagem de Jesus não é solitária, mas
uma passagem coletiva, de toda a humanidade ao Pai para chegar à mesma
transformação do Cristo. Passamos em
esperança e em sacramento (batismo),
mas devemos passar na realidade da vida cotidiana, imitando sua vida e,
sobretudo, o seu amor até nos configurarmos com o Cristo que da morte passou à
vida. Páscoa é aqui passagem
de Cristo e passagem do homem.
Aqui se encontra toda a riqueza da catequese dos Santos
Padres sobre a relação: ressurreição-batismo-configuração. A Páscoa é
vista na sua dimensão antropológica,
pois exige o combate
espiritual como resposta à
ação salvadora de Deus, que se realiza na Páscoa de Jesus. Esta nossa Páscoa,
na Páscoa do Cristo, constitui o caminho da santidade. É a passagem - paschein - do homem velho para o homem novo até
assumir as feições do Cristo. Celebrar
a Páscoa significa realizar esta configuração com Cristo morto e ressuscitado: “Batizados
em Cristo... fostes feitos semelhantes à imagem do Filho de Deus” (Rm
8,29), até nos revestir-nos dele (Gl 3,27).
Viver a Páscoa significa entrar num processo de conversão
constante. Os passos para esta Páscoa vivida no dia a dia - passagem do homem
velho para o homem novo à imagem de Cristo - se encontram, sobretudo, nos
sacramentos da Eucaristia e da Reconciliação, e na caridade.
Esta conversão - o viver a Páscoa no dia-a-dia -
requisito para a plena eficácia do Batismo, é um processo continuo de mudança total de estilo de vida;
deverá se despir do homem velho dia após dia, morrendo a cada dia: aquilo que
aconteceu no Batismo uma vez por todas, deve continuar acontecendo a cada dia
e, para isso, contamos com a graça do Batismo que nos fez co-participantes da
vitória do Ressuscitado.
Entrar neste processo de configuração com o Cristo morto
e ressuscitado significa encontrar o sentido da Páscoa: Cristo é nossa Páscoa (1Cor 5,7). Isso faz com que a Páscoa
não seja um evento do passado, mas algo que está presente no caminho de fé de
todo batizado, chamado a realizar em sua vida a passagem para o homem novo,
imagem do Cristo ressuscitado
Para refletir
- A vida do batizado é um caminho para a
configuração com o Cristo: viver da sua ressurreição. Como está indo o meu caminho para a santidade - configuração com o Cristo?
- Como
estou valorizando os meios para este caminho de configuração: Eucaristia, Reconciliação e caridade?
Pe. frei Vincenzo Frisullo
Ministro Conventual