"VAI, EU ESTOU CONTIGO" (EX 3,12) REFLETINDO SOBRE VOCAÇÃO
RETIRO DE
AGOSTO DE 2011
“Vai, eu estou contigo”: foi isso que
Deus disse a Moisés, a Maria, a Mãe de Jesus (Lc 1,28), aos Apóstolos (Mt
28,20) e a tantos outros antes de nós. Aliás, foi este o nome que Deus deu a
Jesus: “Emanuel, que significa Deus
conosco” (Mt 1,23) = “Eu estou contigo!”.
Ninguém
chama a si mesmo: somos chamados sempre por alguém. O chamado vem de fora: é
Deus que chama. Toda vocação é iniciativa de Deus: é gratuidade, liberalidade,
é predileção.
Ser
chamados pelo nome é a coisa mais freqüente e comum que nos acontece no dia a
dia: Luiz Carlos, Cláudio, Vincenzo... Quando alguém chama, a gente para e
pergunta: “o que há?”. As vezes somos chamados, mas não escutamos: há muito barulho
ao redor ou dentro de nós. Sem silêncio não há escuta, e sem escuta não pode
haver resposta adequada. Deus não está no furacão, no terremoto nem no fogo:
Elias o percebe na brisa suave (1Cr
19, 11-12).
Quando
alguém chama é porque precisa de você; você dá sua resposta, se compromete e
vai agindo. A Bíblia é a história da vocação de um povo; muitas vocações
pessoais em vista da vocação de um povo todo: para ser um sinal da “glória de
Javé” no meio de outros povos.
Quando
se fala em vocação, logo se pensa na vocação específica de padre, religioso,
ministro, ou mesmo na vocação à santidade ou na vocação do batismo. No entanto,
tudo isso, mesmo sendo verdadeiro, é somente uma parte. Antes de tudo isso, há
uma vocação básica que abarca e fundamenta todas as outras vocações. Esta
vocação básica é ser o que somos: eu
sou Vincenzo, você é Diego. Esta vocação é: ser Vincenzo, ser Diego. Isso quer
dizer que nossa vocação básica é ser
humano. Não se constrói um prédio começando pelo andar de cima! A
realização da própria humanidade em plenitude é a vocação básica, primaria e
insubstituível de cada um. São Leão Magno dizia que: “Jesus foi tão humano, mas
tão humano, como só Deus pode ser humano assim”. E Santo Irineu, falando da
encarnação, afirmava que “Jesus Cristo redime aquilo que assume”, por isso a
humanidade é vocacionada à sua realização plena: “O homem vivente é a glória de
Deus”. Esta intuição pode ter inspirado São João de Matha a ligar a
glorificação da Trindade à libertação dos escravos - Gloria tibi Trinitas et captivis libertas! - nos quais ele via a
imagem de Deus desfigurada: homem livre - o não cativo - adquire sua dignidade
plena e, por isso, pode readquirir a imagem de Deus perdida. Esta vocação
básica comporta um contínuo trabalho de “melhoramento” da nossa humanidade
pessoal. São Paulo fala de “estatura” do Cristo quando propõe a humanidade de
Cristo como modelo da maturidade humana (Ef 4,13). Libertar-nos de tudo que
impede o pleno desenvolvimento de nossa personalidade até a maturidade, é um trabalho-compromisso
que não conhece pausas tendo diante dos olhos Jesus Cristo, homem perfeito.
O
nosso exame de consciência cotidiano é uma boa oportunidade para verificar o
aperfeiçoamento da nossa personalidade, libertando-a de todo entrave que impede
seu desenvolvimento: capacidade de decidir com maturidade; serenidade diante
das contrariedades; capacidade de nos relacionarmos com os outros com
equilíbrio; de conviver apesar das possíveis divergências de opiniões; desapego
daquilo que nos prende - coisas ou opiniões - limitando nossa liberdade
interior e exterior; desenvolvimento físico, afetivo, intelectual que nos leva
a assumirmos a responsabilidade diante dos compromissos assumidos. Estas
“coisas” que têm como objetivo o amadurecimento pleno de nossa dimensão humana
- até quanto é possível nesta terra! - são chamados de valores humanos. A
psicologia ajuda a desvendar as tantas amarras que nos impedem de responder à
nossa vocação básica, e o Evangelho nos mostra o exigente caminho que leva a
esta resposta: “Quem não toma a sua cruz
...”.
A
insistência sobre estes elementos “humanos” é unânime nos mestres da
espiritualidade que os consideram como condição importante para o caminho de
perfeição até a configuração com Cristo. Uma vez dada a resposta a este chamado
básico - que nunca é dada de uma vez por todas - poderemos responder melhor à
nossa vocação específica, pois, como diziam os latinos: “Natura não facit saltus”: a graça - a espiritualidade - supõe a
disposição para caminhar em busca da maturidade humana. Não cuidar destes
valores humanos pode constituir uma “resistência” à vocação e um serio
obstáculo à convivência tanto na vida familiar, quanto de comunidade.
A
realização da vocação humana é um processo complexo, mas indispensável que
exige a participação concomitante de várias instâncias: a família, com a
presença saudável das figuras materna e paterna; a escola, com seu processo de
socialização e cultural; o ambiente sócio econômico e cultural propício. São
pré-condições para que a vocação humana não fique comprometida. Isso nos faz
compreender a importância do trabalho de promoção humana que a Igreja vem
desenvolvendo ao longo dos séculos.
No
chamado de Jesus podemos constatar alguns elementos específicos que dão
identidade à vocação do discípulo. Segundo Marcos 3, 13-14, Jesus chama para si: constituiu o grupo para
que “estivessem com ele”. O primeiro
momento, então, consiste na “vida com ele”: convivência, para chegar a uma
adesão incondicionada. Esta adesão é o elemento fundante de qualquer vocação.
Em
primeiro lugar se diz “sim” a ele, à sua pessoa. Esta exigência caracteriza
Jesus diante dos mestres de todos os tempos: antes de qualquer outra atitude,
por causa dele ou de sua mensagem, está adesão à sua pessoa. Segundo a
teologia, isso revela a consciência que Jesus tem de sua identidade: nunca se
ouviu na historia das religiões que alguém, antes mesmo de propor sua doutrina,
propõe a si mesmo como referência indiscutível e absoluta para seus seguidores,
e faça disso uma questão indispensável para a salvação. Isso significa que
antes da vocação especifica, seja qual for, está a adesão a Jesus: hoje se fala
de “encontro”. A vocação específica, sacerdócio, vida religiosa, vida
matrimonial ou outro tipo de vida que se possa imaginar, é uma modalidade do seguimento, mas o
seguimento - adesão à pessoa de Jesus - vem antes e é condição prévia e
indispensável para qualquer vocação. Seguimento de Jesus, elemento básico de
toda vocação especifica, significa:
a. imitar
o mestre: Jesus é o modelo a ser recriado
na vida do discípulo (Jo 13, 13-15); convida-nos a apreender dele que é “manso e humilde de coração” (Mt 11,29),
e a imitá-lo no serviço aos irmãos (samaritano, lava-pé), carregando a cruz: “quer quiser ser meu discípulo, carregue sua cruz e me siga” (Mc 8,34);
b. participar
do destino do mestre: convida a “estar
com ele nas provações” (Lc 22,28) e nas persecuções
(Jo 15,20) e até morrer com ele (Jo
11,16; Mc 8,34);
c. ter
a vida do mestre dentro de si: esta terceira dimensão nasce depois da
páscoa: identificar-se com Jesus vivo.
É a dimensão mística da vocação cristã: “Eu
vivo, mas não eu: é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20), pois tudo passa a
ser considerado como um lixo para seguir Jesus e se tornar semelhante a ele: configuração (Fl 3, 7ss).
Outro
elemento característico da vocação é a missão:
Jesus os chamou para “enviá-los a pregar”
(Mc 3,14). O estar com ele tem como finalidade o envio: Jesus não forma para
si, nem em vista de uma profissão do discípulo, como os outros mestres; ele os
escolhe “para ficarem com ele e enviá-los a pregar” = em missão. Isso para
poder continuar e atualizar sua obra de salvação na história. O chamado deve
assim “sair de si” para “ir ao encontro” de Jesus (adesão) e dos outros
(missão).
Assim
como a consciência de Deus como Pai é a raiz da identidade de Jesus: “Eu sempre faço o que o Pai me manda fazer”
(Jo 12,50), “O meu alimento é fazer a
vontade daquele que me enviou e levar a termo a sua obra” (Jo 14, 34),
também para nós a consciência de Jesus como Mestre e Salvador é a raiz da nossa
identidade como vocacionados. Jesus, enviado do Pai, nos chama para nos enviar.
Isso significa que ninguém é chamado por si e para si, mas sempre em vista dos
outros (missão).
Daqui
surge um terceiro elemento: a vocação é
pessoal, mas se realiza em Igreja: Jesus, “constituiu o grupo dos doze”.
Por isso que São Paulo, apesar de ter um caminho próprio de evangelização,
sente a necessidade de se encontrar com os outros Apóstolos, para “não caminhar
em vão”. Está assim afirmado o duplo
objetivo da vocação: comunidade e
missão. Seguir Jesus comporta: estar com ele, formar comunidade com ele (Mc
1,17; 3) e ir à missão (Mc 1,17; Lc 5,10).
Como
religiosos, somos convidados, e fazemos profissão disso, a seguir Jesus no
ritmo da vida comunitária, criando um ambiente familiar que retrate a vida dos
primeiros chamados: At 2, 42-47; 4,32-35. Na medida em que saberemos “estar
juntos” estaremos preparados para a missão.
Para
a meditação:
- Em relação à minha
vocação humana: cultivo as “virtudes humanas”, base das “virtudes cristãs”?
- Tenho consciência de
que a resposta ao chamado é algo constante e permanente que comporta disposição
à conversão = mudança e continua reorientação?