O ROSTO DA PALAVRA
Neste mês da
Bíblia, somos convidados a “nos abeirarmos da Palavra”, segundo a bela
expressão do papa Bento. Proponho como tema desta meditação uma das quatro
imagens (voz, rosto, casa, caminho) dos
Padres no Sínodo de 2008 sobre A Palavra
de Deus na vida e na missão da Igreja: “O Rosto da Palavra”. Todos temos a experiência do rosto:
vivemos rodeados de rostos. A nossa existência é feita de encontros e
desencontros de rostos: rostos simpáticos, antipáticos, indiferentes; rostos
belos, feios; tristes, alegres; rostos restaurados, recauchutados, rebocados
...
Falar de rosto significa falar de encontro, pois o rosto indica alguém,
uma pessoa que o rosto manifesta, revela, define e identifica. E o rosto fala
também, com todas as expressões da comunicação (expressão de amor, de
compaixão, de raiva, de ressentimento, de sofrimento, de indignação, de ódio,
de indiferença...). Assim o rosto fala,
e fala sempre, mesmo quando está mudo. O
Evangelho de Lucas registra um momento emocionante e dramático em que o rosto
de Jesus humilhado, voltando-se para Pedro que acabava de traí-lo, o marcou
para sempre: “Então o Senhor se voltou e
olho para Pedro. E Pedro se lembrou de que o Senhor lhe havia dito: ‘Hoje antes
que o galo cante, você me negará três vezes’. Então Pedro saiu para fora e
chorou amargamente“ (Lc 22, 61-62).
E a história continua com a lembrança
de um outro rosto, desta vez o rosto de Pedro: uma tradição diz que Pedro tinha
no rosto as marcas das lágrimas que lhe caíram durante a vida toda, como sinal
do seu profundo arrependimento. O evangelho de Lucas nos diz ainda que o rosto
de Jesus se transformava durante a oração. É vendo o rosto dele transformado
depois de uma oração, que os discípulos pediram: “Senhor, ensina-nos a rezar!” (Lc 11,1). A tradição religiosa fala
do rosto de Jesus impresso no pano de Verônica.
Falar em rosto significa afirmar a cristologia
da Palavra: a Palavra eterna e divina entra no espaço e no tempo, assumindo
um rosto e uma identidade humana, a tal ponto que é possível aproximar-se da
mesma diretamente e pedir, como fez aquele grupo de gregos presentes em
Jerusalém: «Queremos ver Jesus» (Jo
12, 20-21).
O encontro com o rosto realiza a
palavra, pois lhe dá identidade, lhe dá um tom, a personifica; enfim, lhe dá um
rosto, e a palavra se torna meio privilegiado de comunicação, como nos atesta o
evangelho de João com aquela afirmação surpreendente: “E a Palavra de Deus se fez homem e habitou entre nós” (Jo 1,14) e,
morando no meio de nós, assumindo um rosto humano, veio ao nosso encontro e se
tornou revelador do Pai e nosso companheiro de viagem. É o processo da Encarnação e que se realiza em várias
etapas e formas.
2. A segunda etapa é da Palavra que se encarna no Livro. A tradição cristã muitas vezes estabeleceu um
paralelo entre a Palavra divina que se faz
carne e a mesma Palavra que se faz
livro. Santo Inácio de Antioquia falava do Evangelho como “carne de Cristo”. Ele dizia: “Me
refugio no evangelho como na carne de Jesus”. São Jerônimo afirmava que nós “Comemos e bebemos o Sangue de Cristo
no mistério (Eucaristia), mas também na leitura das Escrituras ... para mim,
penso que o Evangelho é o corpo de Cristo”. Por isso, o cristianismo se apresenta como religião da Palavra, mais do que a
religião do Livro. Palavra esta que não é simplesmente um sopro da voz, nem a
composição de letras e vogais: é uma Pessoa com um Rosto definido: Jesus de
Nazaré. Daí a expressão de São Tomás de Aquino: quando lemos a Bíblia, não
estamos em busca de palavras, mas de uma Pessoa, de um rosto: Jesus Cristo, a
Palavra. Todos os 73 livros da Bíblia convergem neste rosto: «Nos tempos antigos, muitas vezes e de
diversos modos Deus falou aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas
ultimamente falou-nos através do seu próprio Filho» (Hb 1, 1-2). Eis porque
Hugo de São Victor, como já Santo Agostinho, coloca a pessoa de Jesus como
ponto de convergência dos dois Testamentos: “Toda a Sagrada Escritura constitui
em um só livro, e este livro único é Cristo no mistério, porque toda a Divina
Escritura fala de Cristo e se realiza em Cristo”. Se nos limitarmos somente ao
conhecimento da «letra», a Bíblia permanece apenas um documento do passado, um
nobre testemunho ético e cultural, mas graças à Encarnação de Jesus de Nazaré,
a Bíblia se torna um livro vivo, surpreendente, atual, caminho de salvação,
porque nos leva ao encontro com o Rosto do Filho de Deus, revelação do próprio
Deus: “Quem me viu, viu o Pai” (Jo
14,9).
3. Na terceira etapa a Palavra se encarna no rosto do irmão. São Leão Magno, falando da Encarnação
afirma: “O único e mesmo Cristo está não apenas neste homem, primogênito de
toda criatura, mas também em todos os santos. Disto não podemos duvidar”. São
Leão fala da encarnação da Palavra - Filho de Deus – “nos santos”, termo que
designa os cristãos. Esta afirmação de São Leão encontra respaldo nas próprias
palavras de Jesus registradas:
- nos Atos dos
Apóstolos, a propósito da perseguição de Saulo contra os cristãos, o
próprio Jesus se identifica com os cristãos perseguidos: “Saulo, Saulo, por que você me persegue?” (At 9, 4). A Palavra que
se torna Rosto - Jesus de Nazaré - se encarna no rosto dos irmãos perseguidos.
- no Evangelho de
Mateus, a propósito do juízo final: estava com fome, estava com sede,
estava nu, estava preso e doente: “Eu
garanto a vocês; todas as vezes que vocês fizeram isto a um dos menores dos
meus irmãos, foi a mim que o fizeram” (Mt 25, 40).
O Documento
de Aparecida, no qual a palavra rosto
recorre 17 vezes, fala do “rosto daqueles que sofrem” e, apresenta a lista de rostos desfigurados: uma longa e triste
ladainha de sofrimentos (65). Estes
rostos não podem deixar indiferente o cristão, pois neles somos convidados a
realizar o encontro com o Rosto de Cristo.
Se Ele se queixa com Felipe porque é incapaz de encontrar no rosto dele
o rosto do Pai: “Felipe, como é que você
diz: mostra-nos o Pai?” (Jo 14,9), “Quem
me viu, viu o Pai” (Jo 14,9), Ele continua se queixando com aqueles que, no
rosto do irmão, não conseguem ver o Rosto dele: Eu garanto a vocês, todas as vezes que vocês não fizeram isto a um
desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram” (Mt 25, 45). A cristologia
da Palavra nos leva ao compromisso com o irmão.
Para a reflexão:
-
Com Moisés possamos exclamar: “Senhor,
mostra-me o teu rosto!”
-
Com o salmista: “Ouço dizer no meu
coração: ‘Procure minha face’ É tua face que eu procuro, Javé, Não me escondas
tua face”.
-
Com o anseio ardoroso de ver o rosto de Deus, suplicamos: “A minh´alma tem sede de Deus, o Deus vivo anseio com ardor, quando irei
ao encontro de Deus e verei tua face, Senhor”, pois a palavra e a oração reclamam
o Rosto.
- Ver o rosto de Deus é a máxima benevolência do próprio
Deus: “Deus se compadeça de nós e nos
abençoe, faça brilhar sobre nós a luz do Seu rosto”.
-
Em
nosso dramático itinerário de busca, possamos aclamar: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de ti,
mas agora foram os meus próprios olhos que te viram» (Jó 42, 5).
A palavra tem boca, mas só o rosto fala ...
A palavra tem olhos, mas só o rosto vê...
A palavra tem ouvidos, mas só o rosto escuta ...
A palavra diz, mas só o rosto sabe ...
A palavra proclama, mas só o rosto canta ...
A palavra escreve, mas só o rosto sente ...
A palavra lê, mas só o rosto entende...
A palavra recita, mas só o rosto dialoga ...
De O rosto de Cristo é a sala do encontro de
Deus com o homem no diálogo universal da criação. (Frei
Manuel Rito Dias, in Bíblica, n.º 327, Março-Abril 2010).
Pe. Frei Vicente Frisullo, OSST
Ministro conventual