Martírio: testemunho de fé
Seguindo o ano “duplamente” jubilar, em que
nossa Ordem nos propõe celebrar com alegria e gratidão os nossos santos pais
Fundador e Reformador, João de Matha e João Batista da Conceição, seguindo
também no “Ano da Fé”, proclamado pelo papa Bento XVI em outubro de 2012 até
novembro de 2013, tivemos a alegria de celebrar a beatificação, em 13 de
outubro de 2013, dos nossos irmãos Mártires Trinitários de Alcázar de San Juan,
Espanha, sem nenhuma dúvida, mártires da fé em Cristo Jesus e na sua Santa
Igreja.
Sabemos que a palavra “Martírio” – do grego
marturia ou marturion – significa literalmente “testemunho”, no sentido mais
cristão ou teológico “martírio” é o fato de morrer para dar testemunho de
Cristo: por seu sofrimento e por sua morte, a testemunha, o martus, manifesta a
verdade do testemunho que presta a Cristo e ao Evangelho. Na Bíblia, já no
Antigo Testamento mas especialmente nos Evangelhos, o martírio é sinal do mundo
vindouro, onde definitivamente o bem terá vencido o mal, garantido a glória
eterna para todos os que perseverarem nessa luta, para todos os que
testemunharem essa verdade.
Na Carta Circular do nosso Ministro Geral
Pe. Frei José Narlaly à Ordem e à Família Trinitária, com motivo da
beatificação do Pe. Hermenegildo da Assunção e seus Companheiros Mártires, ele
nos lembra uma uma frase memorável do papa João Paulo II dirigida a nós por
ocasião do nosso oitavo centenário em 1998, frase que diz: “Os exemplos de
santidade e martírio, que enriquecem a vossa família religiosa, são uma
confirmação do vosso carisma”. Nosso Ministro diz que “É verdade (...) nossa
vocação é confirmada por tantos irmãos e irmãs de nossa família que deram sua
vida por Deus no martírio ou que viveram de forma excelente as virtudes
cristãs”.
Somos convidados por nosso Ministro Geral,
como Ordem e Família Trinitária, a render graças a Deus Trindade por tão belos
exemplos de doação de nossos irmãos. Somos convidados também a fazer uma
reflexão sobre nossa vocação de sermos sinais de doação, de renúncia e entrega
a Deus Trindade, vivendo com fidelidade nossa consagração e vocação e sermos
sinais do amor e da misericórdia de Deus para aqueles que nos circundam.
Fray Narlaly nos escreve dizendo que,
“durante a terrível perseguição da Guerra Civil Espanhola – que em três anos,
nunca será demais lembrar, martirizou quase sete mil religiosos e religiosas! –
22 de nossos irmãos foram martirizados, vítimas do ódio contra Deus e a
religião. Desses 22, nove foram beatificados em 2007 e agora temos mais seis:
Frei Hermenegildo da Assunção, que era Ministro daquela comunidade, Frei
Boaventura de Santa Catarina, Frei Francisco de São Lourenço, Frei Plácido de
Jesus e Frei Antônio de Jesus e Maria, esses cinco sacerdotes, e ainda Frei
Estevão de São José, que era irmão cooperador, lembrado como homem de grande
caridade, a ponto de todos os dias repartir na portaria do convento a comida
com os mais pobres. Todos os seis, segundo testemunhos, “viveram sua vida
religiosa entregues à oração e ao apostolado, em um cotidiano marcado pela
pobreza e pelo trabalho, em contato direto com o povo de Alcázar de San Juan”,
nesta cidade, “religiosos e leigos trabalharam de forma admirável e
reconhecida” pelo bem da população, inclusive oferecendo oportunidade de estudos a alunos pobres que
não podiam pagar por isso. Fato esse certamente esquecido pelos milicianos da
Guerra Civil.
Fray Narlaly lembra que a perseguição da
Guerra Civil Espanhola se tratou “de uma perseguição aberta, de uma crueldade
que admite poucas comparações, com o objetivo de eliminar fisicamente o clero e
os católicos mais engajados na fé e a banir todo sinal/símbolo religioso da
vida pública e privada dos fiéis”. Nesse clima, na manhã do dia 21 de julho de
1936 nosso convento foi cercado por milicianos, que prenderam e torturam nossos
frades, junto a outros religiosos franciscanos e um dominicano. Os sacerdotes
foram mortos na noite de 26 para 27 de julho. Frei Estevão foi morto, após
longo sofrimento moral e físico, no da 12 de setembro, quase dois meses depois
de preso. Fray Narlaly nos diz que três aspectos ao redor desses seis mártires
devem ser considerados: “seu amor a Cristo, o testemunho de amor fraterno e seu
sofrimento pela fé. (...) As palavras que dizemos em nossa profissão religiosa:
‘até a morte’, no caso dos mártires adquirem um significado novo: até a vida.
Eles foram assassinados porque eram religiosos; e eles deram sua vida como
resposta de amor a Cristo (...) O tempo da perseguição e da prisão foi um
impressionante testemunho de união com o Senhor (...) Na hora suprema muitos
gritaram: ‘Viva Cristo Rei!’, confessando seu amor completo e incondicional ao
Senhor. O segundo aspecto é o heróico amor fraterno de nossos irmãos mártires.
Ao menos três tiveram oportunidade de livrar-se do martírio, por influência
política de familiares e amigos, mas rechaçaram tal possibilidade, dizendo que
queriam sofrer a mesma sorte dos irmãos, confirmando que a vida fraterna é
parte essencial e irrenunciável de nossa consagração. Tal testemunho de
fraternidade nos deve impulsionar a uma aposta decidida por uma contínua
conversão a uma vida fraterna mais autêntica e de maior qualidade, sabendo que
essa é nossa vocação na Igreja”.
Nosso Ministro Geral nos alerta que vivemos
um tempo de perseguição religiosa – ainda que às vezes pareça estar muito
distante de nós –, perseguição que se faz realidade em alguns de nossos países.
Nos lembra também que “nós trinitários, fundados para o socorro dos que sofrem
por sua fé em Cristo, devemos tomar consciência
especialíssima sobre nossos deveres neste momento de nossa história. O
trabalho a favor do livre exercício da relação do homem com Deus e da denúncia
de toda intolerância deve unir-se ao auxílio dos que sofrem por causa da fé. A
beatificação desses seis irmãos nossos é uma grande graça que a
Santíssima trindade nos dá. Sua mensagem de amor a Cristo e aos irmãos é a
mensagem do triunfo da Graça de Deus sobre nossos limites, da vida sobre a
morte, da mansidão sobre a maldade. Estes seis beatos trinitários manifestam a
beleza, tão antiga e tão nova, do Evangelho do Senhor Jesus, feita realidade na
vida de pessoas tão simples e tão afastadas do extraordinário como foram eles.
Esses mártires, com suas coroas e palmas fazem mais santa nossa Ordem, (...)
pelo seu fiel cumprimento de sua profissão religiosa”.
Sabemos que o martírio é conatural à fé
cristã. O próprio Cristo tantas vezes nos convida a assumir sua cruz e segui-lo
em sua paixão: “Quem não tomar sua cruz para seguir-me, não é digno de mim.
Quem se agarrar à vida, vai perdê-la, quem a perder por mim a conservará” (Mt
10, 38-39). E ainda: “Asseguro-vos que, se o grão caído na terra não morrer,
ficará só; se morrer, dará muito fruto. Aquele que se agarrar à vida, a
perderá; aquele que desprezar a vida neste mundo, a conservará para uma vida
eterna. Quem me serve que me siga, e onde eu estou estará meu servidor. Se
alguém me servir, o Pai o honrará” (Jo 12, 24-26). Todo cristão, por ser
batizado, deve manter a consciência de que, se for necessário, deverá estar
sempre disposto a morrer por Cristo, associando-se a ele na entrega de si
mesmo, sendo esse o modo mais nobre de seguir a Jesus Cristo. Contudo, também é
preciso lembrar que o martírio não é fruto de esforço ou de uma deliberação
humana, embora certamente contará com a liberdade humana e a capacidade de
responder com generosidade a tal chamado. Ninguém será mártir por mérito
próprio, o martírio é sempre resposta a um chamado do bom Deus, que nos convida
a um testemunho de amor e, ao nos convidar, já plasma o ser da pessoa chamada,
dando-lhe a capacidade de viver tal disposição de amor.
Que a alegria de poder viver e conhecer
esse testemunho de amor a Cristo que nos deram nossos irmãos espanhóis, tão
próximos de nós no tempo, nos dê também o desejo de viver com entusiasmo nossos
trabalhos, ainda que não sejam os mais agradáveis e os que tenhamos sonhado.
Textos para meditar:
Jó 19,1-29
Lc 6,40 e Mt 10,24-25
2Cor 12,1-10
LG 42
Carta aos Romanos de Santo Inácio de
Antioquia, Liturgia das Horas, 17 de outubro.
Pe. Frei Vicente de
Paulo Dias Pereira, OSST